quinta-feira, 4 de junho de 2020

Bolsonaro é um fraquia

foto: Gladyston Rodrigues / EM /D.A. Press

O Bolsonaro, mais do que um político, é uma franquia; há uma franquia Bolsonaro de políticos. A mentalidade de Jair Messias Bolsonaro foi formada numa linha muito particular do Exército, que é marcada pelo ressentimento a partir da repercussão de um autêntico livro-monumento lançado em 1985 que é o livro "Brasil: nunca mais", que denunciou as torturas, as arbitrariedades e desaparecimento de corpos da ditadura militar de uma forma incontestável, em que todos fazem o mesmo relato, dizem que foram usados como cobaia em aulas de tortura.

Isso marcou muito uma geração do Exército brasileiro que, por isso, sempre teve um projeto revanchista, baseado num processo revisionista. É por isso que na mentalidade bolsonarista nega-se a existência de tortura, nega-se que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da história da humanidade, tenha torturado. A mentalidade bolsonarista não nega apenas a Covid-19, nega também as torturas da ditadura militar.



Os militares formaram então o projeto Orvil, que é livro ao contrário, coisa bem de militar. É literalmente o "Brasil: nunca mais" de cabeça pra baixo, não são mais os crimes da ditadura, mas sim os da luta armada. É uma lista longa de grupos armados, dos desmontes desses grupos e dos crimes que os militares consideram que eles cometeram. Eles estabelecem uma cronologia para a história republicana que é puro delírio, mas justifica plenamente a mentalidade bolsonarista.

Quando eles dizem que o Brasil está virando comunista, como é possível imaginar isso? Como imaginar que os governos petistas eram comunistas? Não é um delírio, é essa a matriz narrativa do Orvil. Se você aceita essa narrativa, o que decorre é um segundo ponto: a Doutrina de Segurança Nacional. Se há a tentativa de tomada do poder, é preciso que haja uma contrapartida de defesa, a Doutrina de Segurança Nacional. Que não é uma invenção da ditadura militar brasileira: foi desenvolvida no âmbito da Guerra Fria.

Como você faz para traduzir essa Doutrina de Segurança Nacional para tempos democráticos? A militância virtual bolsonarista realiza massacres de reputação com uma violência e virulência inéditas no Brasil. De maneira sistemática, a guerra cultural bolsonarista inventa inimigos em série e realiza rituais expiatórios.  Se você pensar no que foi feito com Gustavo Bebianno, o general Santos Cruz, com o próprio Mourão, a Joice Hasselmann, agora com o Moro. De uma hora para outra há uma inversão completa na caracterização do personagem, e a destruição simbólica que eles sofrem é um equivalente de uma eliminação do ponto de vista simbólico e individual. Além do que a violência, que parecia ser uma violência puramente digital, está nas ruas agora.



Na narrativa do Orvil, a quarta tentativa de tomada de poder ocorreu pela tentativa de infiltração nas instituições, sobretudo as de cultura: imprensa, arte e universidade. O ministro do Meio Ambiente disse: “Aproveitemos que os olhos da imprensa estão voltados para a Covid e vamos passar de boiada dispositivos infralegais". Damares se vira para Teich e diz: “Ministro, no seu ministério há muitos abortistas e feministas”. O ministro da Educação sugere prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Todas as ações do governo são de destruição das instituições assinaladas pela narrativa do Orvil. Quando eles falam em extrema imprensa, a matriz narrativa está no Orvil. Há ali uma postura física de agressão, quase de passar as barreiras e agredir os profissionais fisicamente.

O que acontece quando você entrega a Fundação Zumbi dos Palmares a uma pessoa que nega a existência do racismo? É ou não é uma destruição? Quando você entrega o Iphan para uma blogueira que se define como “turismóloga”; A Fundação Casa de Rui Barbosa para uma roteirista da TV Record; Quando a Capes corta 6 mil bolsas de pós-graduação na calada da noite; O CNPq lança um edital e retira a área de humanidades. Eles não podem, por enquanto, eliminar inimigos fisicamente, mas eles podem destruir a universidade. Isto nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo.


A função da guerra cultural bolsonarista não é imposição de valores deles; não há valores, só há destruição sistemática das instituições. É um projeto de democracia na aparência e autoritarismo na prática. Como compreender o esforço de Jair Messias Bolsonaro de controlar a Polícia Federal? Porque, além de proteger os seus, ele persegue os adversários. Se um governo consegue instrumentalizar todas as instituições de Estado a seu favor, não é preciso dar um golpe, o golpe já está dado.

Agora, há um paradoxo aqui. Sem guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas com guerra cultural não pode haver governo Bolsonaro. Se há essa capacidade incomum e inédita de manter massas sob constante excitação, porque o bolsonarismo não governa sem inimigos criados em série, ele é vazio do ponto de vista do conteúdo. Podemos passar anos discutindo se foi golpe ou impeachment, décadas se foi ditadura ou não, mas não posso passar um minuto discutindo se meu pai morreu.  O caos a que seremos levados pela atual situação e a proximidade da finitude tornarão a disputa de narrativas ociosa. A armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito permanente, mas você não consegue fazer nada.

Se nós temos um adversário hoje, é a Covid-19, e que o governo Bolsonaro não consiga entendê-lo é uma prova do que estou dizendo. Esse colapso vai acelerar o processo da violência, as redes sociais estarão cada vez mais violentas, os bolsonaristas, cada vez mais aguerridos, o número deles tenderá a diminuir porque só sobrarão os fanatizados, mas estes tenderão a violências inesperadas e fora de controle. Há tentativas de armar cidadãos em todo o país, a instrumentalização de polícias militares em alguns estados, há mais militares no governo Bolsonaro do que em todos os governos da ditadura militar em 20 anos.

A ditadura militar queria criar instituições à sua imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só poderemos deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse governo.


*Leia a entrevista com o professor João Cezar Castro Rocha na íntegra em https://apublica.org/2020/05/quanto-maior-o-colapso-do-governo-maior-a-virulencia-da-guerra-cultural-diz-pesquisador-da-uerj/

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