quinta-feira, 4 de junho de 2020

Leite, cavalo, tocha e bandeira

Há 22 anos, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendia, em discurso na Câmara, o direito de oito alunos do Colégio Militar de Porto Alegre de terem escolhido Adolf Hitler como personagem histórico mais admirado. De lá pra cá a admiração e a vinculação de Bolsonaro com os ideais nazistas e racistas de Hitler e de Mussolini nunca foram disfarçados e, atualmente, se tornam a cada dia mais ostensivos e visíveis.



Nos últimos dias, diferentes episódios compuseram um conjunto de referências e vinculações ao nazismo e ao fascismo que, precisamente por sua variedade e recorrência, desfaz qualquer argumento em favor da mera coincidência, casualidade, não intenção ou inconsciência por parte de Bolsonaro e de seus apoiadores, assim como, por outro lado, esvazia de sentido ou credibilidade qualquer acusação de fake news dirigida aos inúmeros pesquisadores que apontam a evidente relação entre gestos, falas e rituais do bolsonarismo com símbolos e discursos nazistas e fascistas.

O nazifascismo de Bolsonaro se expressa tanto via ato falho como por atos conscientemente planejados, igualmente recorrentes. Seu in-consciente nazifascista é vasto e vem à tona por diferentes vias e mídias, por diferentes imagens, gestos e falas.

Seus múltiplos rastros, indícios e evidências são cada vez mais significativos, incontestáveis e, sobretudo, inaceitáveis.

LEITE

Na construção ideológica da Alemanha nazista, o leite, com sua aparência límpida e branca, passou a ser utilizado, por influência da eugenia (falsa ciência), como símbolo de pureza genética, sendo associado, então, às bases de uma suposta supremacia racial ariana: superioridade, força e limpeza.

Supremacistas brancos, como os nazistas alemães e neonazistas contemporâneos, utilizam o ato de beber e brindar leite a fim de ressaltar um traço genético que é mais comum em pessoas brancas do que em outros – a capacidade de digerir lactose quando adultos.

A “tolerância à lactose” foi utilizada por eugenistas alemães para afirmar, sem qualquer prova ou rigor científico, a falácia da superioridade racial branca.

Desde então, o ato de beber e brindar leite tem sido utilizado como forma de afirmar e exaltar a falácia da superioridade racial branca.

Filmes como “A suspeita” (Alfred Hitchcock, 1941), “Laranja mecânica” (Stanley Kubrick, 1971) e “Bastardos inglórios” (Quentin Tarantino, 2009) evidenciaram esta relação simbólica entre o copo de leite e a afirmação da supremacia racial branca.

Atualmente, no entanto, o gesto ganhou outro modo de uso, e tem sido utilizado como forma de chiste, de piada interna, por parte de grupos de extrema-direita.

Cientes da transformação do brinde com leite em saudação nazista, grupos de extrema-direita dos mais variados matizes têm costumado realizar o gesto publicamente, por vezes sem qualquer motivo específico, ou então o associando a diferentes motivos, a fim de produzir confusão via ambiguidade, duplo sentido, e, assim, acusar de delirante e mentiroso quem detecta e desmascara as intenções de fundo do gesto, ou seja: estabelecer reconhecimento e apoio mútuo entre aqueles que compartilham de uma mesma ideologia supremacista.

Na semana passada, o ato de beber leite em público encontrou no Brasil um novo modo, sempre difuso e ambíguo, de ser realizado. A estratégia foi utilizar a campanha denominada “desafio do leite”, em suposto apoio aos produtores rurais, como um pano de frente, ou seja, como modo de aparentar uma coisa e, assim, ocultar suas intenções de fundo.

Se fosse de fato uma campanha efetiva de governo, Bolsonaro e o Ministério da Agricultura haveriam de produzir material oficial vinculado à ação, e não teriam simplesmente brindado copos de leite numa live, como fizeram.

Horas depois da live, Allan dos Santos, youtuber bolsonarista investigado na CPMI das Fake News ao lado de Eduardo Bolsonaro e tantos outros bolsonaristas, repetiu o gesto, fazendo “pose para o print”, e dizendo “Entendedores entenderão”, deixando claro que haveria um sentido a mais e oculto por detrás do aparente apoio ao produtor rural.

“O leite é o tempo todo referência neonazi. Tomar branco, se tornar branco. Ele vai dizer que não é, que é pelo desafio, mas é um jogo de cena, como eles sempre fazem”, declarou a doutora em antropologia social Adriana Dias (Unicamp), que logo após detectar as forças de fundo contidas no ato do presidente e do youtuber teve sua reputação triturada pelos robôs bolsonaristas.

CAVALO

Ainda neste fim de semana, Bolsonaro foi mais uma vez às ruas contrariando todas as recomendações das autoridades médicas e científicas internacionais, promovendo aglomeração e não utilizando máscara. Mas desta vez foi às ruas montado a cavalo.

A cavalgada de Bolsonaro provocou associações diretas com imagens similares de Mussolini acenando ao povo a bordo de um cavalo. Poderia ser só uma associação forçosa, se não fosse no dia seguinte Bolsonaro publicar em suas redes sociais um vídeo do tipo “pano de frente”, ou seja, imagens que desviam o espectador de sua origem e intenções de fundo: no vídeo um senhor italiano brada a favor da liberdade de expressão e utiliza um bordão de Mussolini: “Melhor um dia como leão do que cem anos como ovelha”.

Em seu post, Bolsonaro faz questão de escrever uma mensagem difusa, com duplo sentido: “Em 1 minuto o velho italiano resumiu o que passamos nos dias de hoje”.

Quem é o velho italiano?

O senhor corcunda do vídeo ou seria o herói oculto de Bolsonaro, Mussolini, que assim como Bolsonaro atacou a imprensa e ameaçou governar sem o Congresso até que enfim cumpriu suas ameaças, instalando o fascismo via banho de sangue, enquanto acenava para seus súditos com a “Saudação Romana”, o ato de estender o braço para a frente com a palma da mão para baixo: exatamente o gesto utilizado por apoiadores de Bolsonaro para saudá-lo, assim como nazistas também fizeram para saudar Adolph Hitler.

TOCHAS

Líder do movimento “300 pelo Brasil”, a ativista de extrema- direita Sara Giromini adotou como codinome Sara Winter, homenagem direta à espiã nazista britânica Sarah Winter.

Sara Winter, a brasileira, tem ligações com movimentos neonazistas, diz ter sido “treinada” por neonazistas ucranianos e, além do codinome associado a Hitler, traz uma cruz de ferro nazista tatuada no peito.

O nome 300 Pelo Brasil é uma referência ao filme “300”, longa-metragem fortemente criticado por sua estética fascista, que heroicizava soldados espartanos mostrando-os musculosos e super masculinizados, enquanto os persas eram retratados como invasores selvagens e afeminados.

Movimentos de extrema direita europeus passaram a utilizar este filme como referência na sua luta contra imigrantes e refugiados. Em 2019, um grupo de 300 neonazistas saiu às ruas na Alemanha para protestar contra a presença de imigrantes no país.

O número 300 virou uma marca do neonazismo na Europa.

No Brasil, o grupo de Winter se vincula tanto aos neonazistas europeus como aos supremacistas brancos americanos oriundos da Ku Klux Klan (aqueles que queimaram e penduraram negros enforcados em árvores). Há poucos dias, Winter e cerca de 30 extremistas dos 300 marcharam rumo ao STF empunhado tochas na mão, remete aos cavaleiros da Ku Klux Klan e aos neonazistas da cidade americana de Charlottesville.

BANDEIRAS

O lema do 300 Pelo Brasil é “vamos ucranizar o Brasil”.

A expressão “ucranizar o Brasil” foi adotada por bolsonaristas em referencia às milícias ucranianas que se associaram a grupos neonazistas armados e protagonizaram os protestos na Ucrânia que, em 2014, culminaram em invasão ao palácio do governo e a deposição do presidente. Após o golpe, políticos de extrema-direita e neonazistas foram levados ao centro do governo ucraniano.

Em todas as últimas manifestações bolsonaristas ocorridas na Avenida Paulista, militantes de extrema-direita favoráveis a Bolsonaro empunhavam bandeiras do partido ultranacionalista ucraniano Pravyy Sektor (Right Sector), um dos grupos neonazistas que protagonizaram os conflitos na Ucrânia.

ARTE PURA

Em janeiro, o então secretário de Cultura Roberto Alvim publicou um vídeo em que cita e plagia Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, reproduzindo a retórica fascista em defesa de uma “arte pura e nacional” contra uma “arte degenerada”, sendo isto “ou não será nada”, deixando clara sua vinculação a ideais eugenistas e ultranacionalistas que caracterizam o nazismo.

Para além das evidencias verbais, o cenário montado por Alvim para o vídeo se utiliza de uma disposição de objetos (quadro presidencial, cruz jesuíta, ambiente austero) que remete ao gabinete de Joseph Goebbels, e utiliza como trilha sonora um trecho da opera “Lohengrin”, de Wagner, compositor preferido de Hitler.

Bolsonaro elogiou a encenação discursiva de Alvim, e só o demitiu por extrema pressão da comunidade e do empresariado judaicos.

TRABALHO LIBERTA

No começo de maio, uma mensagem oficial da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom) utilizou a expressão nazista “o trabalho liberta” como inspiração para uma mensagem que objetivava incentivar o retorno ao trabalho e o fim do isolamento social. A expressão “o trabalho liberta” estava inscrita na entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde o nazismo exterminou cerca de 1,3 milhão de pessoas.

Diferentes protestos em defesa de Bolsonaro contam com o apoio de grupos neonazistas e skinheads, de extrema-direita, que assim como Bolsonaro insuflam o combate armado a inimigos imaginários em nome de um cristianismo e de um nacionalismo às avessas, que se apropria de “Deus, Brasil e Família” para conflagrar o ódio e produzir a eliminação a qualquer opositor.

Assim como fizeram Hitler, Mussolini e os piores ditadores da História da humanidade.

Não é preciso provar que Bolsonaro é nazista ou fascista, bastam as inúmeras evidências de que suas falas e atos revitalizam e expressam seus mais nocivos ideais.

(via Luiz Felipe Reis, The Intercept Brasil, IstoÉ, Folha de S. Paulo, UOL, e Nexo)

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